Kazuma e Asahi #84


- General!
Disse um dos soldados, que havia adentrado o esconderijo, e fazia isso pelo menos duas vezes por semana, além de buscar Kazuma para ajudar a trazer suprimentos. Naquelas saídas dele, sempre tinha a impressão de que ele iria tomar outro rumo e não voltar mais, por isso, ficava sempre aflito.
- ... Hoje não é dia de suprimentos, é? 
- Não senhor, eu apenas vim trazer as correspondências, entregaram em sua casa, senhor, e essas duas são do comandante pedindo auxílio em algumas decisões. Vou aguardar lá fora se tiver alguma resposta. 
Ao dizer, o rapaz entregou ao moreno duas cartas, uma delas, com o nome dele e uma delas, endereçada para Asahi, não sabia, então preferiu voltar para o quarto para dar privacidade ao outro.
Kazuma aceitou os papéis, alguns com sinais amarrotados, mostravam o nervosismo de quem as segurava, era uma carta de guerra e odiava deixar os companheiros de briga em desamparo, portanto, mesmo dali, sempre faria o máximo para ajudar e se precisasse, sairia por algumas horas. Respondeu cada questão e devolveu ao soltado, indicava sempre a Asahi que lhe desse alguma bênção mesmo que já não fosse o padre de uma igreja e os soldados sempre partiam dali parecendo mais crentes por isso, achava graça. Após a ida do rapaz, voltou-se ao louro e entregou a ele o que continha seu nome. 
Mesmo no quarto, ao ouvir o chamado do outro, Asahi levantou-se, seguindo para a sala onde desajeitado, abençoou os soldados que se curvavam diante a si, sabia que eles precisavam disso naquele momento, um deles até havia segurado a própria mão, o que causou um suave rubor nas bochechas. Após, virou-se em frente a ele e fitou a carta.
- Ah... O que é isso?
- Papel. - Kazuma disse, provocador por um minuto. - É da igreja, para você.
Asahi estreitou os olhos.
- Não me diga? - Riu. - ... Da igreja? Mas... Será que eles querem que eu volte?
- Em tempos assim.
- Eu não voltaria de toda forma. - Asahi disse, decidido e observou o próprio nome escrito na carta, sabia exatamente de quem era, o que preocupou a si um pouco. - Você me dá licença por alguns minutos?
- Claro. À vontade.
Asahi assentiu e seguiu com a carta até o próprio quarto, sentando-se na cama que era própria e dele, devagar abriu o envelope, cuidadoso e fitou as cartas, eram duas páginas, um pouco amassadas, um pouco borradas não sabia descrever, parecia que quem havia escrito, estava um pouco confuso sobre como apresentar os fatos, ou sobre escrever aquilo ou não, em alguns locais, haviam riscos em linhas inteiras. Uniu as sobrancelhas, sem entender, mas preferiu começar a ler antes de tirar alguma conclusão.

"Meu querido Asahi, 

Seu que existem pontas soltas até hoje em tudo que ensinei a você, e sei que devido a isso você sofreu muito na sua vida e na sua infância por ser tão diferente das outras crianças, por ser tão diferente das outras pessoas, por essa razão eu estou escrevendo essa carta, também porque sei que pode ser a última oportunidade que eu terei de falar diretamente com você, espero que mesmo no meio desse caos, ela possa chegar até suas mãos. Primeiramente, espero que não me julgue mal, até ler tudo que eu tenho a dizer a você...

Há muitos anos, enquanto eu ainda era um padre jovem na igreja, recebíamos nossa cota normal de pessoas que vinham assistir a missa, sempre fomos uma vila pequena, você sabe. Uma vez, um rapaz veio diretamente até mim pedir a minha benção. Como eu era jovem, decidi dar a ele a benção e acompanhá-lo em suas confissões, porque via nele além de tudo, um amigo. Depois disso, em todas as missas, ele estava presente, com seu sorriso branco, seus cabelos loiros e seus olhos azuis como duas piscinas, ele era de fora, os garotos faziam piada dele por causa de seus cabelos, mas eu os achava muito bonitos, como sempre achei os seus. Passávamos cada vez mais tempo juntos, era agradável estar ao lado dele, até que um dia ele veio a uma festa noturna na igreja, e acabamos nos aproximando, mais do que eu gostaria que tivesse acontecido... Na manhã seguinte, fingimos que nada havia acontecido, eu fiquei envergonhado pela minha posição como padre, e ele por ter feito aquilo com outro rapaz, ninguém poderia saber, era um segredo que guardamos a sete chaves, e pouco nos olhamos após aquilo ter acontecido. Minha cabeça era bagunçada por ter quebrado meus votos, ele por não ser mais virgem como seus pais queriam que fosse ao se casar, ainda assim, ninguém ficou sabendo. 
Alguns meses depois, ele voltou para a igreja, eu já não o via mais com tanta frequência então fiquei surpreso porque ele me procurou numa tarde e me levou até a torre, lá ele me disse algo que ia mudar a minha vida pra sempre, e eu nunca imaginei que um ato tão inconsequente pudesse acabar naquilo... Ele estava esperando um filho. Eu vi o rosto dele, as lágrimas em seus olhos pareciam um oceano, eu não sabia o que fazer, nós... Nós não sabíamos o que fazer. Ele se acolheu na igreja porque os próprios pais dele não o quiseram mais em casa após descobrir o que ele havia feito, ele trabalhava ajudando no orfanato onde ele mesmo ficou porque ele tinha só dezessete anos, e eu, não muito diferente com meus vinte e dois, não podia oferecer a ele muita coisa. Eu o acompanhei durante toda a gravidez, até que o próprio orfanato disse que não o aceitaria mais ali em seu último mês, porque não teriam como mantê-lo ali. Eu não sabia o que fazer, tive que levá-lo comigo para a igreja, rezando todos os dias para que nenhum sacerdote descobrisse a estada dele ali, ele ficava trancado em meu quarto, olhava somente pela janela o dia todo, mesmo que fosse entediante, decidiríamos depois o que faríamos. Eu pensava em largar tudo e seguir com ele, iríamos para um lugar onde ele pudesse ver o mar, ele me dizia que queria conhecê-lo.
Numa noite chuvosa, enquanto eu tentava dormir, ele segurou o meu braço, reclamando de dor, e eu sabia o que seria, ele nem precisou terminar de falar. Lembro que me levantei tão rápido que vi tudo escurecer por um momento. Eu o levei comigo para fora da igreja, ele não poderia ter o bebê ali, se ouvissem, eu tinha certeza que tentariam matar o bebê, se não matassem nós dois. Eu fui obrigado a sair com ele na chuva, e eu fui em todas as parteiras que eu conhecia na vila, todas, eu bati em todas as portas, nenhuma delas quis nos receber, ninguém quis abrir a porta. Eu tinha ele nos braços, ele apertava minha roupa e reclamava baixinho, eu me lembro dos cabelos dele molhados, e eu não podia fazer absolutamente nada, estava completamente impotente, me lembro de nunca sentir tanto desespero na minha vida. Por saber que ele não era uma mulher, ele não podia ter um parto normal, em nenhuma ocasião, eu sabia que o bebê iria morrer, mas eu tinha que confortá-lo de alguma forma, então, eu me sentei com ele num banco abrigado da chuva e o apertei em meus braços, eu disse pra ele que tudo ia ficar bem mesmo sem saber se realmente iria, eu rezei por longos minutos pedindo um milagre, lembro-me de ter dito que se eu ainda fosse aceitável aos olhos de Deus que eu pudesse ver aquela criança viva. Foi aí que eu vi, no meio da névoa, uma pessoa parada perto da última casa da rua, era uma velha amiga, enfermeira, que gesticulava pra mim. Era difícil vê-la porque ela estava muito longe, mas eu me lembro de ter levantado e corrido em direção a ela sem pensar em mais nada. 
Quando eu entrei, ela o guiou até a cama, ela era solteira, então ninguém saberia que estivemos ali, ela ainda me disse, timidamente que estava me ajudando somente porque éramos muito amigos, e que ninguém poderia saber sobre aquilo. Eu assenti. Ele estava com febre, muita febre, lembro que o rosto dele parecia uma brasa porque eu o toquei pra limpar a água da chuva. Ela o examinava enquanto eu cuidava dele, ele era calmo, e de alguma forma, o olhar dele me dizia que ele sabia que estava tudo bem, ele me acalmava mais do que o contrário, mesmo sabendo que ele estava numa situação ruim. Eu podia ver a expressão da enfermeira. Ela sabia que não estava nada bem como eu pensava que estava, eu podia ver pelo cenho franzido dela. Foi aí que ela ergueu o rosto e mesmo sem sair dali disse, olhando nos meus olhos: "Você tem alguns minutos apenas, ou o bebê irá morrer, ou os dois vão, vocês precisam decidir". A verdade é que ela era enfermeira, ela não tinha equipamento necessário no quartinho dela para salvar a vida dele, nem se quisesse muito. 
Naquele momento, eu despenquei, eu senti toda a minha vida perder completamente o sentido, eu não podia olhar pra ele e pensar em perdê-lo, eu não podia imaginar aquela situação, mas antes de perceber, ele já segurava a minha mão, e ele sorria pra mim, eu me lembrei de como o sorriso dele era lindo. "Não posso deixar você morrer", eu lembro que eu disse apenas isso pra ele, e ele me respondeu "não podemos deixar ele morrer". Ele me pediu desculpas, e a única coisa que me perguntou é se iria doer, ela disse que não, e eu me senti como se não pudesse fazer nenhuma escolha ali. Ele me disse "me prometa que vai cuidar bem dele, nunca o deixe sozinho, e ele será seu pequeno raio de sol". 
Eu segurei a mão dele, até ele não ter mais forças para segurar a minha, e depois, eu recebi um pequeno bebê nos braços, que tinha os cabelos loirinhos como os dele, foi então que eu entendi porque ele seria um raio de sol. Ele não tinha os olhos dele, tinha olhos castanhos, esverdeados, como os meus, eu soube assim que ele abriu os olhos naquela mesma noite, soube também que ele seria Asahi. 
Eu não pude assumir ser pai dele. Tampouco pude dar a ele uma família, como todas as outras crianças tiveram, eu tive que fingir que ele havia sido de outra pessoa, embora no fundo soubesse que ele era meu, meu e de Akihiko. Ele havia nascido com uma doença rara, e eu sabia que não podia sentir nenhuma dor física, eu tive que cuidar dele melhor do que eu pensava que teria, mas ele não me decepcionou em nada quando cresceu. Quando eu olho pra ele, ainda me lembro de sua mãe, ele tinha o mesmo sorriso, e eu espero que sempre tenha. 

Asahi, eu sinto muito por tudo que fiz a você. Sinto ter renegado você quando precisava de mim, sinto ter mentido, sinto por não poder assumir a você tudo que escrevi nessa carta. Soube que os americanos estão invadindo nossa cidade, então, provavelmente quando receber essa carta eu já não estarei mais aqui, mas pelo menos agora você sabe. Eu te amo, meu raio de sol."

Conforme lia, primeiro havia se tornado curioso sobre o modo como ele falava consigo, depois de ter simplesmente mandado a si pro inferno, porém conforme a leitura, conseguia entender o que ele havia passado para ser aversivo àquele tipo de relação. As sobrancelhas se uniram, podia sentir as lágrimas nos olhos e o aperto no peito, que se intensificou ainda mais ao ler o desenrolar da história, as lágrimas já caiam sobre as páginas mal escritas e por sorte, não danificaram nada. Mordia o lábio inferior, insistentemente, ansioso enquanto lia, simplesmente não acreditava no que havia lido, e de alguma forma, faltava ar para si. Kazuma s
entou-se tipicamente ao lado do rádio, de braços cruzados e olhos fechados imaginava tudo o que acontecia e esperava por Asahi, noutro quarto.
Após um tempo, tentando processar tudo que havia lido, Asahi levantou-se, os passos meio difíceis ainda, as pernas tremiam e seguiu até ele no outro quarto, não sabia, mas estava pálido, como se o sangue tivesse esquecido de percorrer o rosto, segurava as folhas firmemente entre os dedos. 
- ... Kazuma... 
Tentou chamar, mas a voz saiu baixa, teve que caminhar, devagar até alcançar o outro quarto e parou em frente a porta, silencioso ainda. Kazuma ouviu o farfalho, denunciando a proximidade de alguém, abriu os olhos fechados até então, concentrado no rádio. Viu o rapaz ao lado, parecia aflito. 
- O que houve? Venha cá.
Asahi assentiu e seguiu até ele, devagar, parecia tropeçar nos próprios pés e estendeu a carta para ele, sentando-se a seu lado. Kazuma estendeu a mão a ele, mas pegou sua mão e não a carta, o ajudou a vir e então se sentar. Ao se sentar, Asahi desviou o olhar a ele e negativou. 
- Ele era mesmo o meu pai...
Kazuma o observou, um pouco confuso e pegou a carta, faria a leitura. Asahi estava inquieto, não poderia contar a ele a história exata, então preferia que ele lesse por si só, naquele tempo, permaneceu silencioso. Quando Kazuma enfim terminou a história, observou o menor. Bem, ainda que fosse uma leitura melancólica, não entenderia o homem, porque ainda que houvesse sofrido no passado, devia dar a seu filho o que ele não pode ter e não partilhar de seu sofrimento, não desejar o mesmo a ele, mas não diria nada a Asahi. 
- Quer que eu mande alguém busca-lo?
Asahi permaneceu um momento a observá-lo, sem saber o que dizer, e por fim puxou-o para si, abraçando-o e repousou a face em seu ombro, só assim pode chorar, embora silencioso, não queria alarmar ninguém do lado de fora. Kazuma o tomou no toque dos braços, retribuindo seu abraço. O beijou no pescoço. 
- Você quer, Asahi? Talvez eles ainda estejam contendo a situação na região. Talvez você possa dar alguma felicidade a esse homem amargurado.
Asahi uniu as sobrancelhas. 
- ... Ele não vai deixar a igreja. Ele só abandonou na outra guerra porque obrigaram ele a ir, ele nunca teria ido.
- Mas agora ele tem coisas a dizer a você.
Asahi assentiu, unindo as sobrancelhas.
 
- ... Minha mãe, na verdade era um rapaz...
- Eu li na carta. - Kazuma assentiu ao que ele dizia. - Eu vou pedir que verifiquem a área, se sou capaz de traze-lo aqui.
Asahi assentiu novamente, e ainda estava abalado, repousando a face sobre o ombro dele. 
- ... Não acredito disso.
- Eu não acredito que ele é seu pai. - Kazuma disse, também pensando sobre a carta. Afagou os cabelos medianos do menor. - Sinto muito por sua mãe.
- ... Minha vida inteira, eu achei que tinham me jogado na porta da igreja... Achei que ninguém iria me querer nunca, me senti rejeitado de várias formas, e hoje ele me manda isso como se... Bem tudo bem, desculpe por você se sentir um pedaço de lixo.
- Você não precisa se afetar pelos erros de seus pais. - Kazuma disse e tocou seu cabelo louro. - Ou melhor, seu pai.
Asahi assentiu ao ouvi-lo e uniu as sobrancelhas.
- ... Obrigado, Kazuma...
- Vamos, venha se deitar, vou pedir que alguém vasculhe a região.
Asahi assentiu e ajeitou-se na cama ao lado dele, usava roupas leves então não seria tão ruim para dormir.
- ... Não consigo imaginar... O que ele passou... Minha mãe. Ter um bebê, saber que ele iria morrer e ter que escolher entre os dois, eu... Ele teve a coragem que eu nunca teria.
- Eles não tiveram uma vida fácil, mas ainda questionaria o comportamento de seu pai. Não farei a meu filho o que meu pai fez de mau a mim, mas entendo que pensamentos são diferentes e a sanidade também.
Asahi assentiu, unindo as sobrancelhas.
- ... Estou com medo, Kazuma. Estou com medo por estar grávido trancado aqui... Sem nenhum médico...
- Cuidarei de você. Ele estava perdido.
- ... Promete? - Asahi disse a entrelaçar os dedos aos dele. - Não quero ficar sem você...
- Eu não vou deixar nada acontecer a você. Nem a ele.
- ... Eu te amo. Muito. Sinto muito dizer isso, sei que você não gosta de muitas demonstrações de afeto.
- Eu também te amo. - Kazuma disse e acariciou seu rosto frio.
Asahi sorriu, repousando a face sobre a mão dele, sentindo sua mão quentinha, e lembrava-se da igreja, de quando o viu pela primeira vez, de quando o beijou pela primeira vez. 
- Logo vai chegar o inverno... Vai ser bom ter suas mãos pra me aquecer a noite.
- É o que elas sempre fazem, hum? Algumas partes um pouco mais que as outras.
- Uhum. - Asahi riu baixinho. - Vai me aquecer toda noite?
- Já fiz o contrário?
- Não, mas eu gosto de lembrar que tenho o meu herói. 
Asahi disse e deslizou uma das mãos pelo braço dele, acariciando-o, gostava de sentir seus músculos.
- Não sou um herói... - Kazuma disse, achando o apelido constrangedor mas sentiu sua carícia e lhe deu um sorriso canteiro.
- É sim. Você venceu uma guerra, me salvou várias vezes... É o meu herói.
Kazuma negativou e lhe deu um tapa na bunda. 
- Está quente agora? 
Disse e por fim se levantou, o levou para a cama onde o deixou. Só então seguiu ao pedido tratando com o soldado o pedido para a área da igreja, sabia que iria demorar um pouco, mas era o que podia fazer. Asahi r
iu e assentiu, mordendo o lábio inferior e na cama permaneceu, cobrindo-se e deixou-o sair, esperando que ele voltasse para dormir.

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