Fei e Hazuki #1


A chuva caía forte sobre o telhado a ventania e os trovões a acompanhavam, o garoto havia sido largado em frente à casa de esquina e estava ensopado. Em seu rosto deslizavam as pequenas gotas d'água e não sabia se eram lágrimas ou gotas de chuva, seus olhinhos azuis brilhavam na pouca luz acesa na varanda até que alguém decidisse finalmente atender a porta e pegar o garoto como uma encomenda largada pelo serviço de entregas local. O rapaz alto, esguio o havia tomado pelos ombros e mesmo sem secá-lo, molhando todo o chão da casa o arrastou consigo até o outro cômodo e indicou que o menino se ajoelhasse no tatami, segurando seu rosto entre os dedos e analisando-o, era bonito, até demais, bom para ser um dos garotos da casa, mas o ciúme logo aflorou em sua pele ao pensar em ter um garoto mais bonito do que a si ali, era muito confiante para dar espaço a alguém como ele.
- Meiko!
- Senhor.
Respondeu a pequena garota ali parada, também era uma criança e esperava pelas ordens do mais velho.
- Traga uma toalha para ele.
- Sim senhor.
Hazuki ergueu a face e ainda chorava ao ter o rosto analisado, sempre fora uma criança muito feliz em sua casa, até seus pais perderem a empresa devido a uma guerra, só então ocorreu o que nunca pensava que um dia pudesse ocorrer, fora preferível vendê-lo do que mantê-lo e todos passarem fome. Tinha treze anos ao chegar no motel, sentia no peito o sentimento horrível do abandono e da insegurança do que iria acontecer em seguida, sabia que todos os garotos ali eram sujeitos a coisas que não queriam fazer e por isso chorava mais do que podia, até chegando a soluçar. Seus cabelos eram negros e compridos e sua pele, tão branca quanto a neve, era realmente um garoto muito bonito, mas o que mais o diferenciava dos outros eram seus olhos azuis, era o que o dono mais invejava, o lembrava um oceano calmo de águas límpidas de onde havia nascido, uma época que provavelmente nunca mais voltaria.
Katsuragi era o dono do bordel, um homem detestável de seus já vinte e tantos anos, ele nunca dizia sua verdadeira idade, mas se fosse tão velho quanto era ruim, seria um ancião. O problema é que o maldito era bonito, com seus cabelos negros e compridos e olhos castanhos amendoados, realmente andrógeno, pareciam uma gueixa, fora o primeiro prostituto da casa, e alguns anos depois conseguiu se tornar dono, por meios que ninguém sabia como, só ele, afinal, não existia mais nenhum garoto daquela época para contar aquela história, alguns garotos diziam que ele havia queimado todos vivos, mas ele não era tão ruim assim, bem, talvez tivesse queimado só o dono.

- Seque o garoto e o leve para o sótão.
A garota permaneceu um momento o observando e franziu o cenho.
- Mas senhor...
- O que?
- O sótão...
- Não me conteste!
A pequena assentiu e guiou o garoto consigo para dentro da casa, mas ele não parecia do tipo que simplesmente ia acatar e seguir, afinal, tentou correr em direção à porta em prantos e gritando chamou pela mãe e o pai, que obviamente, nunca o responderiam. A serviçal o observou, sem saber o que dizer ao dono parado ao lado e visivelmente irritado, embora estivesse acendendo um cigarro em sua cigarrilha preta e levantando-se, fez sinal para que ela se retirasse, segurando em seguida o garoto pela gola do quimono, puxando-o para si.
- Já chega! Se gritar mais uma vez eu arranco a sua língua! - Abaixou-se. - Você tem noção que você foi vendido pra cá? Não adianta gritar, sua mãe, seu pai, eles te jogaram pra fora como se fosse lixo, aceite e cale essa maldita boca!
O garoto engoliu o choro e franziu o cenho a unir suas sobrancelhas, sem acreditar no que ele dizia.
- Não é verdade!
- É claro que é, o que acha que é essa casa? Uma colônia de férias? Vai por mim, é melhor calar a boca, ou vou te fazer dormir no quarto junto com um dos meus garotos e o cliente, você não vai gostar.
O silêncio se fez quase automático e cessando o choro ele assentiu, sendo guiado pela gola ainda em direção à escada e subia para o sótão onde dormiria naquela noite segundo o outro.
O local era assustador, sujo, com teias de aranha e não havia ali nenhum sinal de futon ou qualquer outra coisa onde pudesse dormir, o estômago estava embrulhado de fome, já que havia saído de casa logo cedo para chegar somente a noite naquela cidade, para receber a notícia de que nunca mais iria voltar para casa. Era uma criança, como iria sobreviver ali? O pior era a incerteza mesmo, nem os trovões que ressoavam com tanta força no lado de fora causavam tanto medo em si quando isso. Havia ali um baú, antigo com algumas coisas largadas pelo tempo, que preferia não mexer e o vazio, que era onde preferia estar mesmo, lá embaixo era muito perigoso para uma criança.
O pequeno guiou as mãos sobre o abdômen, sentindo dor de fome e achou um cantinho para ficar, sentindo-se protegido do barulho, luz e qualquer outra coisa para que ninguém pudesse encontrar a si e talvez, nem o dono pudesse encontrá-lo, isso era o que ele pensava, já que seus pézinhos estavam aparentes da porta e fora exatamente o que o outro garoto vira ao adentrar o local, embora ele houvesse tentado se encolher ali, era evidente mesmo assim.
- Hey, tome cuidado que seus pézinhos estão de fora.
- Eh?
O pequeno indagou, ouvia a voz, e não era nem um pouco semelhante a voz do dono do local, nem da garotinha, parecia a voz de um homem, mas era dócil, nada como imaginava os garotos que ali trabalhavam, e ao sair, deu de cara com um rapaz, maior do que a si e bem bonito. Ele tinha os cabelos loiros e compridos, batendo em sua cintura, seus olhos cinzas indicavam que ele tinha alguma outra descendência que não somente a japonesa, e ficava ainda mais evidente com seu sotaque puxado.
- Vem cá, não precisa ter medo.
E abaixando-se ele abriu os braços, esperando pelo garoto que averiguou se realmente era seguro antes de caminhar rapidamente até o outro e abraçá-lo, para quem não tinha nada, o outro parecia bem receptivo.
- Você tem os olhos azuis?
Ele se encolheu, só o que faltava era mais alguém invejando os próprios olhos.
- É bem incomum para um japonês, não acha? -Disse e segurou seu pequeno rosto entre os dedos, observando-o. - São muito bonitos.
Hazuki se corou, desviando o olhar ao maior ao ser segurado e sorriu em seguida.
- Isso, não chore. Katsuragi disse pra deixarem você aqui e não abrir até de manhã, você já comeu?
- Não...
- Imaginei.
E ao dizer, retirou do bolso dois pequenos bolinhos de arroz, entregando ao pequeno em suas mãos ainda pequenas para alguém de sua idade.
- Obrigado...
- Não há de que, eu venho ver como está amanhã, hum?
Ele observava o garoto como um irmãozinho mais novo que nunca tivera, havia saído de casa por opção própria ao contrário dele. Queria levar aquela vida. Os pais eram donos de uma fábrica de quimonos, então tinham dinheiro, o problema fora quando decidiram que ele teria de herdar toda a fortuna e fazer tudo que mandassem, fugiu antes que tivesse chance de pensar na possibilidade, gostava de ser livre, não de viver preso. Fei tinha dezesseis anos, e dois meses desde que havia chego ali, já tivera seus primeiros clientes, único garoto da casa autorizado a ser somente ativo, isso se devia ao fato de ter a atenção do dono, obviamente.
- Qual é o seu nome?
- Fei. Li Fei.
- ... Você é chinês?
- Ah sim, conhece bem os nomes, ah? - Sorriu. - E o seu?
- Shimizu Hazuki.
- Shimizu... Combina com você.  Mas você parece uma garotinha. - Sorriu novamente. - Gong Zhu.
O sorrisinho apareceu nos lábios dele novamente ao dar uma mordidinha no bolinho de arroz.
- O que isso significa?
- Princesa. Bem, tenho que ir antes que me vejam. Por favor, não faça barulho, Katsuragi tem um chicote, e ele machuca bastante. Se precisar de alguma coisa, meu quarto fica bem aqui em baixo, bata três vezes na parede.
- Hai...
Fei se virou, deixando-o ali a seguir em direção a escada e a última coisa que se lembrava era de ter visto os olhinhos do garoto brilharem no último rastro de luz da porta aberta, partia o coração deixá-lo ali, mas nada podia fazer, ou Katsuragi poderia castigá-lo. Ao levantar a mão, acenou uma última vez para ele, que foi retribuído e logo fechou a porta do sótão.


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