Kazuma e Asahi #55


O dia estava calmo, podia sentir a brisa do campo conforme colhia as pequenas flores com a garotinha, era filha de Akemi, a mais velha, ela não parecia ligar para o fato de que antigamente usava outras roupas, não parecia ligar para o fato de que antes já fora um padre e agora era só um homem comum, era agia como qualquer criança poderia agir, com sua doçura habitual, e por isso gostava dela.
- Asahi-san! Mamãe disse que teremos muitas flores nessa primavera!
- Hum? Ah sim, Miyu, sem dúvidas.
Asahi deu um sorrisinho fraco, desde o episódio com o fim da guerra, não se sentia capaz de sorrir realmente, e embora focasse sua cabeça em colher as flores, ou lavar a louça, roupa ou fazer doces, tudo que a estalagem exigia, para si, não era suficiente para distrair a cabeça. Ainda olhava para o campo com aquele mesmo ar triste, como se faltasse alguma coisa em sua vida. E sabia exatamente o que faltava. Estava completando quatro meses desde aquele episódio, não o vira mais desde então, não recebera nenhuma notícia, nem um cartão, nada. Havia ido para a igreja diversas vezes, algumas vezes simplesmente se sentava em frente ao local e observava as pessoas que passavam, mas tinha que ser cuidadoso para não ser expulso por algum dos clérigos, aquilo já havia acontecido. Eles não se importavam se já havia sido um padre ali, se já havia morado no local, ou se já havia feito pessoas muito felizes, o pecado que havia cometido para eles era maior do que o amor que deveriam ter pelo próximo como seu Deus os ensinava.
Era muito triste o fim que aquilo tinha, algumas vezes costumava pensar que preferia que a guerra tivesse durado, e era um pensamento extremamente egoísta, sabia que as pessoas não estavam seguras, sabia que elas agora estavam bem mais felizes, mas estava em pedaços, o fim da guerra para si, não havia trazido nada de bom. No início, acreditou que ele fosse voltar. Esperou, esperou, esperou, e nada. Não haviam nem notícias, quando perguntava aos militares que ainda estavam na área, ou não conheciam o nome dele, ou não se importavam em responder. Eram somente militares desinformados sobre tudo que havia acontecido ali, tudo que rodeava a si antigamente.
Ainda tinha uma bíblia, era verdade. Era a única coisa que havia restado do período em que fora um sacerdote na igreja, mais nada. A batina havia deixado por lá, o próprio quarto havia se mantido intacto, só levara as roupas que usava nas horas vagas e que ainda assim, não eram muitas. Akemi havia sido um anjo para si, e nas horas em que mexia em sua maquina, fazia algumas peças de roupa para que pudesse usar, as próprias não iriam durar muito, nem seriam úteis durante o inverno. E o inverno viria. E as chuvas, e a sensação de que ele havia desaparecido, como se nunca tivesse existido. Tudo que tinha para saber que aquilo havia sido real era o quepe dele na cabeceira da cama, e dormia todas as noites abraçado a ele, mas com o passar dos dias, o cheiro dele também havia desaparecido. Até o campo onde antes havia sido sua base, agora estava coberto de flores. Ele poderia facilmente ter sido um sonho.
- Asahi-san, você não quer comer? - Akemi perguntou, de um modo dócil enquanto estendia um dos sanduíches em direção a ele, e a filha também.
- Não, estou bem, obrigado.
Akemi sabia, ela sempre soube, de alguma forma que estava diferente, ela havia se escondido, mas sabia sobre si e o general, todos na vila falavam sobre isso, era só esse o assunto deles, como se o fim da guerra não tivesse trazido mais nada de bom ou ruim, e ninguém tinha certeza, mas os boatos davam passagem para xingamentos, empurrões ou até pessoas que se recusavam para vender algo para si nas barracas. Desde então, havia parado de fazer compras, e ficava somente em casa ou num campo isolado, colhendo flores ou frutas, indo para lugares onde não havia ninguém. Havia se tornado um prisioneiro na própria cabeça, não se permitia mais pensar, porque todos os pensamentos que tinha, lembravam a si dele, e a dor que sentia era indescritível. Lembrava-se de que um antigo padre da igreja costumava dizer que Deus não dá uma dor a quem não pode suportá-la e por um tempo pensou que era forte o suficiente para aquilo, depois, notou que Deus nunca aprovaria a união que tinha com ele, e que aquele comentário e pensamento era ridículo. Se sentia como alguém renegado, não só pelo amante, mas pelo próprio Deus que tanto adorou por tantos anos. O que havia feito de tão errado para merecer aquele castigo? Talvez merecesse. Várias vezes chegou a pensar em suicídio. Não era algo tão incomum, pessoas se matavam por bem menos, mas alguma coisa fazia a si só ficar sentado naquela colina olhando as flores, com o olhar vazio. Era como uma casca vazia. Já não sentia dor, e agora também já não sentia mais nada. O próprio corpo anestesiava a si, anestesiava os sentimentos, e de alguma forma, queria poder sentir dor física, mas aquela dor que sentia era mil vezes pior.

Naquela noite, ele havia se recolhido, o quarto era pequeno, muito pequeno, quase um cubículo, mas sentado na cama, Asahi  pensava em tudo que havia acontecido, fazia uma nota mental, olhava um ponto fixo, como alguém perdido em pensamentos, e fazia isso todos os dias no lugar de suas orações, havia prometido a ele que não se machucaria mais, e não o fez, mas precisava se punir de alguma forma, e o modo que encontrou era fazer aquilo. Pensava em tudo que já havia feito de errado, se confessava para si mesmo, e também se punia por ser obrigado a sentir aquela dor psicológica. Sua lista de pecados sempre começava com "amei um homem, mesmo sabendo que isso a mim não era permitido". Sabia que a palavra amei estava mal colocada, porque ainda amava, ou não doeria tanto.
Ao fechar os olhos, sabia que a noite seria difícil, era só mais uma noite para muitos, mas se lembrava daquele dia como se fosse o próprio, era o dia em que o havia visto entrar pela igreja, ajoelhado para rezar, fora quando o viu pela primeira vez. Naquele momento não queria nada, somente abraçá-lo de novo, embora parte de si, fosse tomado pela raiva de saber que ele havia partido sem dar satisfações para si.
- Asahi-san?
- Sim? - Disse, desviando o olhar em direção a porta, vendo-a ser aberta por Akemi.
- Desculpe interromper, eu fiz um chá pra você.
- Obrigado. - Sorriu, meio de canto.
- ... Asahi, se você precisar conversar, eu... Posso ouvir você, tudo bem?
O loirinho desviou o olhar a ela, por um momento confuso e negativou.
- Tudo bem.
- ... Os boatos, eles são reais? Quer dizer... Você realmente gostava do Kazuma?
Por um momento a garganta se fechou, Asahi tentou respirar, mas não conseguia falar nada, era como uma tortura, ouvir o nome dele. Não sabia o que responder.
- Porque se for verdade, saiba que eu não ligo. Eu nem dou ouvidos aos boatos maldosos porque você é uma pessoa maravilhosa e eles são uns idiotas. Não deveriam estar falando da sua vida.
- É verdade sim, Akemi. Me desculpe. Mas... Não se preocupe, eu não vou envergonhar você.
- Você não me envergonha, padre, digo, Asahi. O senhor sempre foi muito bom pra mim, sabe disso. Me acolheu quando eu precisei de você. Não é motivos para achar que iria me envergonhar. Não escolhemos quem amar, infelizmente...
- ... Obrigado, Akemi.
- Não há de que. Amanhã irei até a cidade, você quer ir comigo?
O loiro ergueu a face a observá-la e assentiu, sentindo as lágrimas que molhavam os olhos.
- Então até amanhã.
- Até amanhã... 

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