Kyo e Shinya #7


Quando desceu do carro, o vento soava forte, que não estava presente antes, talvez o voo tivesse sido cancelado, ou talvez, já tivesse saído, e se tivesse entrado nele, poderia ter morrido. Parte da cerejeira que ainda estava em frente ao local despencou sobre a rua, deixando o cenário ainda mais macabro, e fora naquela hora em que correu para dentro de casa, a última coisa que esperava era que houvesse um temporal, furacão ou seja lá o que fosse, ainda mais a si, medroso como era, talvez se assistisse o noticiário em alguma parte do dia, soubesse da ameaça do tempo, mas não havia nem ligado a tv.
Num movimento rápido, trancou a porta, ouvindo os assovios nas janelas e correu para fechar a porta da cozinha e sala, por sorte o estúdio de ensaios no andar de cima não sofria com problemas do tipo, afinal, sempre estava fechado, claro que a prioridade era ver como o outro estava, mas ficara tão assustado com a aparência do tempo, que temeu que alguma coisa pudesse acertar a casa. Logo em seguida, correu para as escadas, observando o escritório no segundo andar e por sorte, tudo estava fechado, então não haveriam folhas para apanhar do chão, ou coisas piores, ele também não estava lá. Não ouvira nada no quarto, não poderia estar dormindo, eram três horas da tarde e tudo dizia o contrário. Em passos calmos, o baterista observou e analisou todo o local, chamando baixinho por ele, e alguns trovões, causaram sobressaltos em si enquanto caminhava, porém a situação havia piorado tanto, que o último trovão fez a si subir as escadas quase num pulo.

Ele não estava na cama, constou a falta dele depois de puxar o edredom e observar os travesseiros desarrumados, e o edredom agora desalinhado que fez questão de arrumar cuidadosamente, era óbvio que estava no banheiro, era o último cômodo a se olhar na casa, e o que estava com a porta fechada. Pensou que ele estivesse tomando banho, o problema fora depois que percebera que não havia barulho vindo de lá também, somente da chuva lá fora. Não havia sinais de que ele estava ali, fora o que mais havia estranhado, odiava silêncio vindo dele, nunca significava coisa boa e sabia disso por anos e anos a seu lado. O baterista se aproximou ainda mais da porta, encostando-se a ela e tentou ouvir algum barulho de dentro. Nada. Bateu algumas vezes quando finalmente criou coragem e voltou a se aproximar, com os ouvidos colados à madeira. 
- Kyo?
Nada outra vez. Sentiu o coração apertar no peito, preocupado sobre o que podia acontecer com ele e virou a maçaneta, porém a porta não abriu, trancada do lado de dentro. Bateu outra vez, e outra.
- Kyo, por favor, está tudo bem?!
Esperou e no fundo sabia que não teria resposta, mas dessa vez ouviu algum som no local, algo havia batido contra a parede, ou era o que pensava. Estreitou os olhos e novamente bateu na porta, já com o coração praticamente pulando pela boca e naquela hora, o furacão era o de menos.
- Kyo, abra a porta, eu cheguei agora, vou fazer café, posso fazer algo pra você comer, vamos, vamos sentar e conversar. 
Nada.
- Estou ficando preocupado já, o que está fazendo? ... Por que não me responde? Kyohei! 
A paciência esgotou tão logo o último chamado não fora suficiente para fazê-lo responder e estreitando os olhos tomou distancia da porta e empurrou-a com o ombro, tentando forçá-la a abrir, mas era tão magro que nem chegou a balançá-la, alguns anos tocando bateria deveriam ter feito de si mais forte, não é? 
- Kyo, se não abrir eu vou arrombar a porta! 
Falou alto, embora não soubesse como iria fazer aquilo, tinha cinquenta quilos e um metro e setenta, nem se jogasse o corpo contra ela, abriria, mas com a adrenalina que sentiu, um único chute bem dado e estratégico, rompeu a tranca e escancarou a porta, se quisesse fazer aquilo, não o teria feito em outra ocasião se não a vida dele correndo perigo. Encolheu-se com o barulho estrondoso da madeira contra a parede, era uma moça com a força de um homem arrombando uma porta, observou o cômodo, procurando-o visualmente no desespero e quando finalmente o encontrou, arregalou os olhos. Parecia que era a primeira vez que o via daquele modo e de fato, por um motivo como aquele, era a primeira vez. Ele tinha tantos problemas com os pais, sua infância fora tão sofrida, e parecia estranho para si que ele se sentisse triste em relação ao fato de parentes terem falecido, o que imaginou na verdade fora o contrário, pensou que talvez ele estaria feliz, ou achando tudo irrelevante, como se não fizesse a menor diferença na própria vida, mas pelo jeito, o que ele mostrava aos outros não era o que ele realmente sentia, talvez, ele realmente quisesse, ou acreditasse que de algum modo, os pais dele poderiam vê-lo novamente e se desculpar pelo ocorrido, talvez quisesse o que todo filho quer, ser amado. Talvez nada do que dizia fazia sentido, ele era uma grande mentira que nunca iria desvendar.
Kyo estava no chão mais uma vez e se Shinya chegasse um minuto mais tarde, talvez fosse a última, segurava em uma das mãos a maldita gilete afiada e tinha no peito as mesmas marcas, porém feitas em lugares diferentes, elas não tinham forma, eram sempre feitas de modo aleatório, como se ele só quisesse ferir a pele e arrancar algo de dentro de si que parecia doer de tamanha forma, que só poderia se livrar abrindo buracos e tentando arrancar, mas o sangue era o que mais desesperava o baterista em pé, escorria em tamanha quantidade, que parecia ter atingido uma veia, embora no local não fosse possível. Sujava o chão, as roupas inferiores que o amigo ainda usava, até o tapete havia se manchado de vermelho e a água na banheira, de onde ele parecia ter saído, não estava muito diferente, parecia que ele havia tomado banho no próprio sangue. O desespero levou o mais alto ao chão, em direção a ele e ajoelhou-se em frente ao amigo, sentado contra a parede e nem sentiu o baque dos ossos com a força que se jogou contra o piso, tampouco a dor do corte feito em uma das mãos ao puxar de sua mão a lâmina que atirou no chão, quase arremessando, tinha tanta raiva daquele maldito objeto, pensou ter se livrado de todos em sua casa discretamente em outra visita, mas pelo visto, não havia. Sentiu calafrios pelo corpo, ânsia, raiva, tudo de ruim que podia imaginar, sentiu até mesmo vontade de bater nele, mas não o fez, na verdade, esperou o soco contra o rosto pela intervenção que havia feito, e pela porta arrombada, mas não veio nada. Observou-o ali, com somente o tronco desnudo em contato com a parede fria e sentiu as lágrimas nos olhos, sabia tudo que havia acontecido com ele, mas não conseguia ver motivo para que ele continuasse a se machucar daquele jeito, era uma doença maldita, a depressão, corroía a mente até não restar mais nada e quando a pessoa se tornava somente um corpo morto, passava para outra vítima, e era ainda pior quando a própria pessoa não queria se ajudar, nem deixava que outras pessoas a ajudassem, até as flores mais bonitas apodrecem se trancadas longe da luz, imagine o que acontece a uma pessoa trancada em uma mente obscura. Shinya levou um tempo para reagir, mas quando o fez, o puxou para si, as mãos sobre ambos os ombros do amigo, olhando-o nos olhos e negativou com a cabeça um pequeno tempo a esperar uma reação dele em sua expressão vazia, porém o que recebeu fora bem diferente do que esperava. Os olhos dele, brilharam estranhamente, como nunca havia visto até então e toda a raiva que sentia dele se esvaiu até desaparecer ao perceber que aquele brilho eram lágrimas. Não sabia porque aquilo estava acontecendo, não sabia o que fazer, como agir, o que dizer, mas de certo modo, naquele momento, não importava, só o que importava era que havia chego a tempo e que estava ali, ele só precisava de si, mais nada. Shinya colou o corpo ao dele e abraçou-o com toda a força que pôde em meio aos braços, e fora a primeira vez o sentiu retribuir um toque daquela maneira, não se importou com as gotas de sangue que mancharam a camisa branca que usava, muito menos com as lágrimas que deixaram os olhos dele ao repousar sua face contra o próprio peito. Apesar de meio atônito, Shinya deslizou a mão direita pelos cabelos dele, acariciando os fios curtinhos e loiros, e as lágrimas escorreram por sua face de mesmo modo, apertando-o ainda contra si, podendo ouvir finalmente algum ruído vindo dele, mesmo sendo soluços, era algum sinal de que ele respirava, de que ainda estava vivo e abaixando-se, beijou-o nos cabelos, na testa, rosto e lhe deu vários selos nos lábios, observando seus olhos fechados enquanto as lágrimas deixavam seu rastro pelo rosto bonito que tinha. 
- Tudo bem... Tudo bem, eu estou aqui... Eu estou aqui com você. 
Murmurou as palavras, próximo de seu ouvido e permaneceu a abraçá-lo daquele modo por tanto tempo que durou uma eternidade, não parecia desconfortável, e não se moveu até ouvir a respiração pesada, indicando o sono do amigo, ou talvez, houvesse desmaiado por exaustão, não sabia, mas ao menos, não sentia mais dor.
Shinya não conseguiu erguê-lo no colo, então guiou-o para a cama com cuidado, com seu corpo e com sua insônia, não queria que ele acordasse agora, depois de conseguir que ele dormisse junto a si, e ao deitá-lo, observou seu rosto tranquilo enquanto repousava, agora mais calmo. Só então, tivera coragem de se afastar dele e no andar de baixo buscou a caixa de primeiros socorros já conhecida, que guiou consigo pela escada até a cama, sentou-se ao lado dele, ajeitando o edredom a cobrir suas pernas e com um algodão limpou todas as feridas feitas, cuidadosamente com algum produto que não machucasse ou ardesse, mantendo-o adormecido. Logo após, abaixou-se em frente a ele e beijou-o sobre a marca dos machucados, como ele não havia deixado a si fazer antes. Seguiu ao banheiro, onde quebrou a lâmina usada por ele, assim como as outras que encontrou no fundo do armário de remédios e lavou as mãos, limpando o sangue que havia escorrido devido ao ferimento que havia causado em si, e passou em sua volta uma faixa qualquer que achou na caixa, tirou as roupas sujas de sangue e de roupa intima seguiu até a cama com ele, deitando-se ao seu lado e finalmente, cobriu-o com o edredom, ajeitando-o na cama, confortável e beijou-o no rosto, tomando conta de seu sono. 
Não havia se dado conta de que estava pela primeira vez em sua cama, nem que era também a primeira vez que dormia com ele, mas o que importava era que ouvia seu coração bater contra o peito onde havia se deitado, e em meio ao sonho, entre tantos outros pensamentos, ouviu-o chamar o próprio nome. 

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