Kazuma e Asahi #26


Asahi suspirou e estava frio, tão frio que quase sentia os ossos trincarem, os cobertores eram de grande ajuda, mas não todo o tempo, e não podia sair andando com eles pela igreja. Observava a parede branca do quarto, talvez branca demais, como a neve lá fora, porém suja por algumas marcas da ação do tempo, diferente da neve. Sobre um dos pulsos tinha uma faixa branca, cobrindo o corte feito por acidente ao contrário do que os outros podiam pensar, havia o feito ao tentar arrumar o sino na parte de cima da igreja, que já não funcionava mais e não doía, por isso, não falou com a enfermeira, volta e meia trocava os curativos, mas conforme não o via mais, e passou a ver somente a parede branca, acabou esquecendo. Duas semanas haviam passado? Ou mais? Onde ele teria ido? Talvez estivesse morto, não sabia, mas continuava esperando a porta abrir. Nem havia trocado as roupas naquele dia, preferia ficar de cama. Sentia uma coceira no braço, onde a faixa cobria, porém preferiu não retirar a faixa por preguiça, fora quando ouviu o barulho da porta, e a enfermeira adentrou o local.

- Padre, precisa comer um pouco, está tão magro que vai sumir.
- ... Mika não é necessário, mas eu agradeço. Eu só quero ficar um pouco sozinho.
- Você... Está meio pálido...
- Iie. Estou bem.
- Me deixe te examinar melhor.
- Não, tudo bem.
A outra assentiu, porém cessou a observar o padre, e ao lado da cama, viu o quepe ajeitado de qualquer jeito, afinal, dormia com ele toda noite, claro que ela estranhou, mas seu serviço era sobre não fazer perguntas. Os próprios olhos, fixos na parede, aos poucos ficaram nublados conforme a observava e nem tivera tempo de dizer nada, tombou para a cama, ainda silencioso e não vira mais nada. A outra havia se levantado rapidamente, segurando os próprios braços embora não tivesse ideia do porque, mas supôs que tivesse alguma espécie de convulsão, não estava doente, não estava com algum vírus, mas a faixa no pulso começou a incomodar a outra, que a retirou.
- ... Hana! Hana! Corra aqui! T-Traga os antibióticos! Rápido!

- ... Não temos mais antibióticos, Mika. O que houve? .... Meu Deus.
- O que vamos fazer?
- Não sei... Ele... Há quanto tempo ele está escondendo isso? Isso já devia estar com uma dor insuportável.
- Ele tem uma doença, não pode sentir dor.
- ... Droga Asahi, já é a décima vez que ele faz isso com a gente. Parece que além dessa maldita doença ele é um idiota deprimente.
- Hana...
- Ele é. Não sei porque chama tanta atenção do general sendo tão imbecil, Sakurai não parece ser do tipo que pega crianças pra cuidar.
- Vou pedir que chamem ele.
- Não, não precisamos preocupá-lo mais, ele certamente deve ter seus problemas.
- Hana, precisamos de penicilina, ou ele vai perder esse braço.
- Não se preocupe, tenho alguns remédios mais fracos, não está tão ruim assim.
- E vai deixar que fique ruim?
- Estabilize ele, depois conversamos, e o alimente, ele não come há uns dias.
- H-Hai
A semana havia sido um pouco monótona pela metade, já na outra um pouco agitada, embora de uma forma incomum. A guerra aos poucos perdia o estado caótico, embora pequenos atritos ocorressem a longo dos dias, nada que levasse a um verdadeiro alarde, tudo era resolvido entre pequenos grupos dispersos pela área, haviam tomado conta de toda a região até que os ataques se reduzissem, ainda que parte daquilo fosse aos poucos denunciando o fim de toda aquela briga. Kazuma não o havia visto por um tempo, justamente porque embora não estivesse em colisões corporais tinha diversas outras coisas para resolver. 
O moreno sentava-se no pequeno banco ao lado, observando o jovem padre em seu leito não muito confortável, embora muito melhor do que costumava ser. Tinha tecidos limpos, claros, quentes, medicação. Cheirava à limpeza graças as enfermeiras, e embora alí estivesse bem silencioso, podia ouvir ressoar a agitação ao lado de fora da igreja e de seu quarto. Via aquela situação como se fosse ele, havia passado por algo semelhante, com posições invertidas, ao levar o tiro tinha lugar no leito e ele na cadeira como agora se sentava. Via seu braço escondido pelo tecido ao ser envolto. O medicamento havia dado conta da infecção. Havia trazido consigo mais medicação, para ele, para as crianças, para os mais velhos. Caixa com produtos de higiene, alguns doces como mimos, alimentação habitual, trouxera até um tanto mais que normalmente teria feito, não que fosse um modo de reparar as duas semanas com ocupação, já que outro dos homens havia se encarregado de fazer aquilo no próprio lugar. Havia passado duas semanas sem ir até lá, e agora quando chegava, via-o debilitado, adormecido, irresponsável foi como pensou. Por um momento ajeitou seus cabelos louros, mais alongados desde a primeira vez que o havia visto, pôde até se recordar do encontro no salão da igreja, que por sinal era bem diferente do que estava agora, ainda que bem preservada diante das circunstâncias, costumava ser ainda mais bonita. Imaginou como teria sido aquele momento se ele estivesse bem acordado, em condições. E ao deixar a mecha de sua franja sobre os olhos, voltou se encostar no assento, cruzou os braços e esperou por mais uma hora até que ele acordasse. 
A enfermeira se mantinha na porta, observando o padre e ao outro, durante um pequeno tempo, curiosa sobre a relação que ambos tinham, e não se recordava de alguma vez ter visto um general que se sentasse ao lado de alguém, qualquer um que seja num leito de um quarto, mas ali estava ele, quase pegando no sono em sua cadeira e o tiraria do cochilo com o início das palavras.
- Senhor Sakurai. O senhor devia comer alguma coisa, não sabemos quando ele vai acordar... A infecção estava bem ruim.
- Não importa, vou ficar aqui até ele acordar, se eu sentir fome, comerei. 

Quando acordou, já não era mais o mesmo dia, parecia ter um estranho silêncio ao redor, como se não houvessem mais pessoas na igreja e aquilo era de fato, incômodo. A poltrona em frente a si estava fazia, e se perguntava quem esteve sentado ali durante tanto tempo.
- ... Hana?
Murmurou, observando o quarto ao redor, tentando achar algum conhecido, mas não havia ninguém. O pulso, estava coberto com novas faixas, a ferida certamente estava melhor e na veia tinha uma agulha incômoda que não conseguia se livrar. Fora quando ouviu o barulho da porta e uniu as sobrancelhas, tão silencioso que fora, até mordeu o lábio inferior.

Ao abrir a porta, Kazuma observou o jovem rapaz deitado, como já estava há alguns dias, no entanto desta vez tinha os olhos bem abertos. Podia sentir alívio mas era inevitável não sentir vontade de coloca-lo ao colo e bater em sua bunda como em uma criança. Encostou-se ao limiar da porta, fitando-o dali.
Asahi observou-o na porta, e por um momento sentiu um alívio estranho, pode jurar que no sonho, ele havia ido embora, e nunca mais o veria, por isso, tinha lágrimas nos olhos.
- Kazuma...

- Sim?
O maior indagou ao vê-lo murmurar, embora soubesse não ser necessário. Ainda o observava dali e talvez um pouco de apatia fosse o que ele merecia, era como pensava.

O loiro manteve-se a observá-lo por algum tempo, e sentia o nó na garganta, de fato nunca o via ali consigo, nunca o via se preocupar, nunca tinha nem uma indicação de sua preocupação consigo, talvez fosse somente um brinquedo para ele de todo modo. Enquanto queria abraçá-lo, ele parecia querer observar a si encostado a porta, e desviou o olhar, cobrindo-se com o cobertor.
- ... O que faz aqui?

- Estou vendo se acorda ou não.
O maior retrucou. Havia passado alguns dias por lá, na verdade, havia ido e vindo durante aqueles dias, por sorte o movimento lá fora era muito mais controlado do que alguns dias atrás, havia se preocupado com ele, mas não era costumeiramente delicado e sua irresponsabilidade era irritante.
- Você tem que saber se cuidar, ou precisa de uma babá?

Asahi desviou o olhar a ele e negativou, sentindo as lágrimas que já deixavam os olhos, sem poder contê-las e manteve-se em silêncio a observá-lo, não havia o que dizer a ele, ainda mais sendo estúpido consigo quando não tivera culpa, ou era assim que via a si, só não queria preocupar ninguém. Na verdade, era um idiota, já havia percebido isso de alguma forma, nunca deveria ter se deixado levar por um romance como aquele.
- Por que você faz isso, Asahi? Você não pensa direito ou está sentindo falta de um apoio materno, é isso?
Kazuma indagou, embora não soasse ríspido, sabia que podia soar grosseiro. O menor a
rregalou os olhos a observá-lo, ainda silencioso e quando por fim quebrou o silencio, queria bater nele.
- Vá embora, Kazuma.

- Não, eu não vou embora. Você vai me responder, porque você dormiu por dois dias, com uma maldita infecção, e já não é a primeira vez que fica debilitado dessa forma, você consegue ficar pior do que os idosos que vivem aqui.
- É, eu sei, não presto pra nada, sou só um buraco.
- Ah claro, inclusive eu comi você enquanto estava com o braço fodido.
- Eu não iria estranhar.
- Uh. - O maior murmurou em tom risonho embora evidentemente não achasse graça. - Quer que eu faça o que?

- Fique feliz por eu ter acordado? Quando você levou um tiro, não te chamei de irresponsável ou perguntei se precisava de uma babá, eu fiquei vários dias ao lado da sua cama, eu cuidei de você, eu fiz tudo por você...
- Você quer comparar um tiro de guerra com um pulso ferido infeccionado por que não deu atenção? O que você diria se eu levasse um tiro e deixasse a bala na perfuração sem cuidados?
- ... Certo.
- Você acha que estou errado? Se você sabe que não sente essa merda então tome cuidado. Preste atenção, não pare de viver só porque não estamos transando.
O menor uniu as sobrancelhas ao ouvi-lo.
- Não fale assim comigo.

- Se você não parar de fazer merda, eu não volto mais aqui. Deixo vocês todos se virarem sozinhos.
Asahi manteve-se a observá-lo, e era evidente o modo como estava magoado com ele, mas assentiu apenas, mantendo-se em silêncio e virou-se de costas.
- Não adianta de chatear, Asahi, não vou passar a mão em sua cabeça diante da sua falta de responsabilidade.
Kazuma disse e por fim fechou a porta atrás de si, seguindo a tomar posse do assento onde já havia passado algum tempo.

- Eu não queria incomodar ninguém, foi só um pequeno corte.
- Ainda tem coragem de dizer que foi um pequeno corte? Tire a faixa.
O menor suspirou e puxou a faixa, e fora de fato um pequeno corte, que agora estava escuro e havia se espalhado por uma boa parte, tanto que uniu as sobrancelhas, assustado.
- Ah, mas é mesmo somente um pequeno corte, hum?
- Era.
- Estará mais atento agora?
O loiro assentiu e após, Kazuma nada mais disse a ele após aquilo. Asahi manteve-se ainda meio de costas e novamente cobriu a ferida com uma das mãos.
- Espero que hoje você se alimente, ou quer se matar? Afinal, pelo que as enfermeiras disseram, além de estar deixando o braço apodrecer também nada comia.
- Kazuma, já chega.
- Eu digo isso a você.
Asahi desviou o olhar a ele.
- Hum?

- Já chega de fazer tudo isso.
- Já chega de fazer o que?
- Já lhe disse mil vezes.
O loiro assentiu e o outro fez o mesmo breve movimento com a cabeça.
- Você pode ir se quiser.
- Sei que posso.
O loiro assentiu e deslizou a mão pelo lençol, encontrando ali alto duro que estranhou, mas logo notou que era a aba de seu quepe, o qual a enfermeira havia colocado lado a si na cama. Abraçou-o, sutilmente e ajeitou-se no travesseiro. Kazuma permaneceu como estava, encostado, sentado, braços cruzados, mas fechou os olhos, ficando por lá, embora nada tivesse a dizer a ele.

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