Kyo e Shinya #2


A luz do dia cegou o baterista, naquela hora havia percebido o quão ruim fora sua ideia de dormir na sala. A cortina era transparente e deixava entrar toda a luz em cima do local exato onde estava deitado. Resmungou, esfregando os olhos com ambas as mãos e sentiu o corpo dolorido como se um caminhão o tivesse atropelado, mas sabia que fora somente resultado da noite que passara com o amigo. Ajeitou os cabelos, mesmo com as mãos, tentando mantê-los no lugar, mas de manhã nada era tão fácil quanto parecia em questão de aparência, sabia que o rosto deveria estar amassado pela noite de sono mal dormida, ainda era cedo e havia dormido tarde, acreditava que fosse umas cinco da manhã quando finalmente se despediu do outro com um selo sutil e o vira subir as escadas em direção ao quarto, não esperou que ele convidasse a si para dormir com ele, esse era o jeito dele afinal. 
O relógio grande e antigo, feito de madeira na sala marcava nove horas da manhã, o que causou o resmungo ainda maior e a preguiça de se levantar do sofá quentinho com os cobertores, mas fora retirado do estado de inércia em um pulo só quando ouviu algum barulho vindo da cozinha. O amigo morava sozinho, então o que poderia ser? Seguiu até a cozinha com passos lentos e desconfiados, no caminho até havia pego um vaso sobre um móvel da sala, e estranhou a decoração do local por um momento, ele não tinha cara de que comprava vasos para a casa, mas isso não importava, o importante era saber que barulho era aquela vindo da cozinha. Um ladrão talvez, ou um rato? Não, a casa era muito limpa para esse tipo de praga, o vocalista a mantinha impecável apesar dos problemas que tinha. Shinya se esgueirou devagar para a área, ainda a segurar o vaso com ambas as mãos e finalmente espiou para dentro do cômodo, porém arqueou uma das sobrancelhas ao ver quem realmente era o dono do barulho. Kyo estava sentado no balcão, não usava camisa, usava apenas uma calça cinza e em uma das mãos tinha a xícara de café que levava vez ou outra aos lábios, bebendo em longos goles.
- Bom dia, Shin.
Shinya permaneceu a observá-lo um pequeno tempo, meio envergonhado pelo fato de ter levado um vaso para bater no possível invasor e deixou-o sutilmente sobre o móvel na entrada da cozinha atrás de si, caminhando até o balcão onde se sentou em frente ao amigo.
- Bom dia... Sabe que são nove horas da manhã?
- Sei sim. 
- E... Acordou tão cedo por quê? Hoje não temos ensaio.
Kyo bebeu outro gole da bebida antes de responder, apreciando-a e suspirou em seguida, em apreço, como se o café curasse o cansaço do corpo.
- Eu não durmo mesmo. Tenho insônia. 
- Hum... E você... Não toma remédios pra isso?
O vocalista desviou o olhar da xícara ao baterista, indagativo sobre a pergunta tão pessoal, afinal, eram amigos, mas o outro não precisava se preocupar com o que fazia ou deixava de fazer, não eram casados e incomodava a si falar sobre os problemas pessoais que tinha, mas isso todos já sabem.
- Não. – Respondeu, ríspido. 
- Entendi... Você vai ficar em casa? Eu posso fazer comida pra você. Sei fazer aqueles muffins de chocolate que você gosta... E...
- Shin, acho melhor você ir embora.
O vocalista disse calmamente, embora por dentro estivesse se sentindo sufocado com a imposição do amigo, como se já morasse naquela casa, como se fosse algo mais. Haviam transado, mas não estavam se casando. O nó trancou a garganta do maior, que observou o amigo com o cenho franzido por um pequeno tempo, porém, a expressão dele não se alterou em nada, continuou bebendo o café descontraidamente. 
- Certo... Mas por quê? 
- Eu vou sair mais tarde. Se quiser posso te levar em casa já que deixou o carro no estádio do show.
O baterista negou com a cabeça, era óbvio que queria se livrar dele, por isso, preferiu não pedir favores.
- Eu vou a pé. 
- Certo, como preferir.
Por um momento ele não se moveu, permaneceu sentado, esperando algo do vocalista, que não veio, ele não demonstraria que queria que o outro ficasse, principalmente a perceber seu olhar de cachorro abandonado sobre si, não iria convencer dessa vez. Estava incomodado com a companhia demasiada, com a proximidade que ele havia tomado de si, gostava de ficar sozinho, e era assim que era, não iria mudar tão logo e o outro era desconfortável, observava as cicatrizes sobre o peito enquanto falava consigo, como se constantemente sentisse pena de si e não precisava, não queria aquilo de forma alguma, era bem importante para ele frisar essa parte em sua mente. 
- Certo.  - Disse o baterista a se levantar. – Até mais então. 
Tudo que recebera de volta fora um aceno de cabeça e passando pela sala, pegou o casaco sobre o encosto do sofá, que vestiu e a bolsa que trazia consigo, colocando-a sobre o ombro direito. Saiu sem olhar para trás, se era sozinho que ele queria ficar, então que ficasse. 
No dia seguinte, ambos se cruzaram no estúdio e é claro, fingiram que nada havia acontecido. O aperto no peito só crescera desde então, já que mostrava que o outro não se importava tanto assim com seus sentimentos e o que havia acontecido fora somente algo casual, que não se repetiria novamente, mas na verdade, não era fato que o vocalista não se importava, ele sabia de tudo que se passava ao redor, mas não queria se envolver, achava que tinha problemas suficientes para se relacionar com o amigo, e talvez ele pudesse não aceitar a si, como todos os outros que havia conhecido na vida. Eles ficavam perto somente o que convinha, depois quando realmente conheciam a si, iam embora e era aí que se tornava dolorido, ter que apagar alguém importante da própria vida por não ter aceitação do modo como era, não podia mudar, era daquele jeito mesmo, e parecia não existir uma pessoa no mundo que pudesse compreendê-lo em sua essência, uma pessoa que ficasse ao seu lado independente dos defeitos, independente dos momentos de tristeza, e que não fosse embora quando encontrasse no bolso da calça algumas lâminas sujas de sangue.
Shinya o via em silêncio e agora que o observava mais de perto, notava cada manhã triste para o amigo, como se viver fosse uma droga, como se a qualquer momento ele pudesse apenas deitar e morrer, e tudo estaria certo assim. Era triste ver aquilo tudo acontecer e não poder fazer nada, mas não acreditava que uma pessoa pudesse ser tão perturbada a ponto de não ter uma cura para toda a dor que sentia, como se cada corte pudesse ferir bem mais do que a pele, mas também a mente e transformar tudo em um monte de cicatrizes que não se fecham. 
Tudo era extremamente contraditório, havia um preço por estar num mundo como aquele, onde todos usavam todos os tipos de drogas e se matavam aos poucos de um jeito ou de outro, talvez o modo melhor  fosse se cortar com uma lâmina no palco, sem dúvida, porém não era nisso que Shinya acreditava, era ingênuo até demais, o tipo de pessoa que acha que pode mudar o mundo inteiro sozinho, mas uma hora as pessoas acordam e percebem que o mundo está bem além da própria sala de estar.

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